ABAIXO: TRANSCRIÇÃO GERADA POR I.A. (GOOD TAPE)
Edição em andamento.
O cineasta pernambucano, autor também de Febre do Rato, Amarelo Manga, Big Jato, realizou em Baixio das Bestas um filme um chocante, que pra muitos na audiência beira o repulsivo, e isto por sobretudo causa da quantidade de violência sexual que o filme expõe, retratando uma certa cultura do estupro e um brutalismo nas condições do patriarcado. Relações permeadas pelo elemento boçal e brutal – não é um filme que tenha happy end, não é um filme com um grama de positividade tóxica, é um filme realmente violento, contundente, forte, e eu diria até um pouco amargo. Mas e vocês, quais são as primeiras impressões, logo depois de assisti-lo?
Bom, eu sou a Gabriela, sou estudante de jornalismo, e achei chocante o filme, né? Me deixa um tanto sem palavras. Mas, de fato, eu acho que ele retrata de uma forma… não tenho certeza, mas, assim, exagerada, uma violência que é cultural, né? Não sei, acho que eu ainda tô processando.
É massa essa conversa também quando estamos em estado de choque estético e tal, né? Depois você pode falar também sobre isso, né? Quanto é legal assistir um filme e você poder processar, elaborar a vivência com outros e compreender esse choque e elaborar. Essas ideias, né? Então…
Bom, eu sou o Renato, aqui da Casa de Vidro, também. E aí, a gente tá no terceiro filme, né? No ciclo de cinema pernambucano e dando início a esse CineClube aqui. Muito interessante. E, assim, Baixio das Bestas é um filme que me marcou muito quando assistia muitos anos atrás. É um filme que retrata violência sexual, né? Contra a infância e a adolescência. E, nesse sentido, acho que ele… Ele realiza, assim, uma tarefa do cinema realista, né? E do realismo social. E acho que ele atrela essa violência sexual à pobreza, né? E a uma sociedade corrompida ali pela indústria do açúcar, né? Das usinas. Então, é basicamente essa ponte que eu vejo, assim, no tema geral do filme.
Bom, meu nome é Jarlilson. É a minha primeira vez assistindo esse filme. E também é a minha primeira vez aqui na CineClube. E hoje, esse filme, eu acho que foi um filme muito interessante. Um filme muito rico. Acho que o diretor tentou realmente, como a Gabriela falou, impactar. Trazer uma coisa mais pesada pra gente. Tentar fazer a gente refletir sobre as nuances da coisa toda.
E é um filme que ele tenta, além disso, fazer de uma forma tão rica que ele traz várias referências. Referências ao cinema, referências à cultura no geral, à política, como o Renato falou. E é um filme chocante. O roteiro inteiro dele é chocante. O início ele começa totalmente aberto. Ele acaba totalmente aberto. Então, a gente acaba, como o Eduardo falou também, com uma expressão em aberto.
Sim, sim. Eu queria aproveitar algo que a Gabi falou sobre uma questão cultural, né? Porque eu fiquei muito impactado na segunda vez que eu vejo o filme, assim, com a quantidade de expressões gráficas muito explícitas e brutais do estupro de várias mulheres. E muitas vezes com plateia, digamos assim, né?Existe uma espécie de cultura da gangue que produz a possibilidade também desse sujeito estuprador. E até a gente estava lembrando do Laranja Mecânica do Kubrick, né? Onde você tem cenas de violência sexual, mas onde também você tem uma gangue, né? Os drugues lá que se intoxicam com leite misturado com alguma substância psicoativa e tal. E eles invadem as mansões, as residências dos ricos. E em várias ocasiões eles praticam estupros, mas que são praticamente grupais. No sentido de que o sujeito que comete esse crime, né… ele só se empodera pra fazê-lo porque algo ao redor dele o sustenta nessa atitude. Então é uma cultura do patriarcado, uma cultura do estupro e tal, né? Então acho que é interessante talvez a Gabi falar um pouco sobre isto: é evidente que o filme não tem feminismo dentro dele, no sentido de que não tem uma personagem feminista. As mulheres exploram também as mulheres sexualmente e tal. Mas será que a gente pode compreender algo sobre essa cultura do estupro, sobre esse patriarcado? Que assim, no pós-filme, fazendo uma crítica, seria possível aprendermos lições que as feministas querem nos ensinar, entende?
Eu acho que assim, o que mais me vem à mente, pensando nisso, é a cena final do filme, né? Quando a auxiliadora, a personagem principal, sai da casa sendo gritada, né? O avô gritando, sua prostituta, sua vagabunda, com o vestido aberto, né? Suja e tal. Então demonstra pra aquela população aquela situação que já estava acontecendo. E a cena final é um rapaz perguntando pra um senhor: e aí, você acha que ele realmente fazia aquelas coisas? Aí ele fala, não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Eu acho que esse é o central, né? Se a gente pensar nessa questão específica. Que é a neutralidade, né? Ah, eu não vou me envolver, eu não quero saber sobre isso. Então eu acho que é mais… A moça na situação de violência, o homem na situação de violador, mas a sociedade que não quer ver.
Uma cultura do silenciamento que faz parte dessa cultura do estupro, dessa violência patriarcal, né? Sim.Um certo ocultamento através dessas atitudes também, né? A gente não empodera as mulheres, a gente não vê o movimento feminista educando elas. A respeito de, por exemplo, Maria da Penha, né? Denúncia desses violadores, desses estupradores. Não tem um retrato no filme de nenhum movimento que essas mulheres fariam caso ela tivesse tido uma formação política feminista e tal, né? Então me parece também que nesse sentido, lembra o Bacurau um pouco, o tipo de pequena comunidade, né?E essa coisa de comportamentos fora da lei. Comportamentos que a gente tende a ver também como vilania, né? Vários tipos de vilania, vários tipos de agressão. Vários diferentes estupradores com várias diferentes vítimas, né? Então acho que por isso também Baixio das Bestas é um título que expressa, assim,parece que uma sociedade doente, bestializada, violenta, onde você praticamente não encontra relações humanas amorosas, né? Tem muito sexo. Eu vou criar uma dicotomia só pra gente debater, pelo bem do debate, né? Mas é um filme lotado de sexo e desprovido de amor. Seria uma boa descrição?
RENATO
Com certeza.
GABI
Sim, muito bom.
Mas eu acho que ali tem uns pequenos momentos em que aparece certa racionalidade, né? E certo afeto nas relações, por exemplo.E aí até uma figura feminista, eu diria, em um breve lapso de momento, né? Que é a mãe do Maninho. Que em algum momento, quando ela se cansa de toda a vida boêmia, né? No mínimo, do Maninho. E perversa e pervertida, né? Que é um rapaz de classe média que estuda no Recife e tá no interior ali, né? Na região das usinas em Pernambuco e tal. E aí a mãe fala, ela se cansa e fala, ah, cambada de macho inútil, né? Esse acho que é o momento em que alguma consciência entra. E também acho que a condição, todo o retrato da prostituição também como um lugar em que a mulher poderia se realizar na sua sexualidade ou na sua emancipação como trabalhadora. Só que a violência, né? Por exemplo, na personagem da Dira Paes, em que ela sai do prostíbulo em que ela está e vai tentar justamente se envolver ali com os garotos da gangue, do Maninho e do primo, né? Que é o personagem do Matheus Nastergalli. O Maninho é o Caio Blah, né? É representado pelo Caio Blah. E ela busca uma emancipação. Mas ali vem a violência, né? E frustra essa possibilidade, né? Que talvez a sexualidade como uma marca… E a extrema sexualização da mulher também, né? Ela também é cooptada por uma certa possibilidade de emancipação, né? Só que isso justamente num lugar de oprimida, né? Num lugar de vulnerabilidade extrema.
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Bom, eu acho que nos momentos que, como o Renato falou de racionalidade e razão que a gente tem, é uma coisa esquisita da gente pensar, mas é no próprio personagem o primo.
Porque se a gente analisar muito bem as razões pelas quais ele faz o que faz, em alguns momentos ele tem lapsos. Lapsos de racionalidade e ele começa a questionar tudo.
Meio que uma visão existencialista da forma como as coisas funcionam. Ah, a pobreza vem, ela vai dominar o mundo, mas ela vai unir as pessoas.
Então, ao mesmo tempo que ele é uma pessoa ruim, digamos assim, eu acredito, eu suponho que ele tenha consciência de que ele é ruim. Mas, ele não vê ele ser ruim como algo ruim.
Porque ele vê isso como ele fazendo esse papel de unir as pessoas através da dor, da pobreza. Inclusive, todo esse existencialismo, esse significado que as ações dele provocam, me lembra um outro personagem.
O personagem principal de Naked, o Johnny, do diretor Mike Lay. Que é um personagem muito acentuado. Que faz coisas erradas, questiona as pessoas e sempre traz essas reflexões.
Reflexões existencialistas e que provocam toda a sociedade.
E eu tenho uma pergunta muito interessante pra você. Que durante o filme é muito massa assistir com outros, porque de repente o alunos bate papo, né? Que também ilustra o que o outro está pensando, né?
E aí no começo do filme teve uma cena que eu fiquei muito surpreso, que você falou assim, pô, eu estou me lembrando de um episódio bíblico, né?
E era uma cena bem no começo, onde a auxiliadora, essa adolescente que está sendo explorada por essa figura, né? Desse avô, né?
Ela está nua diante daquela audiência de homens, né? E aí você me disse que lembrou da família de Jó. Sim.
Então, conte pra gente porque você lembrou desse episódio da bíblica e o que no filme te fez saltar pra essa reflexão, pra essa conexão de ideias.
Bom, basicamente o que a gente tem é a prostituição daquela garota, claro que é feita de uma forma passiva. O avô dela não vê isso daquela forma.
Pra ele é apenas uma forma de sacrificar ela em prol da família, da família que eles têm.
E isso me lembrou um momento bíblico no qual tem a família de Jó, na qual ele pra defender alguns homens, que na verdade não são homens, são anjos, ele deixa que bandidos estuprem as suas filhas.
E por livre e espontânea vontade. Ele só assiste, todo mundo só assiste. Ninguém faz nada. Porque pra ele aquilo é uma forma de sacrifício.
Pra proteger a fé dele e também de certa forma a família dele, mas principalmente proteger os anjos que estavam ali. Então aquela cena, que é logo a cena inicial, uma cena muito chocante, me remeteu a essa cena.
Pela tranquilidade do velho olhando toda a situação, todos os homens em volta, nós mesmos, os espectadores. A gente acaba, querendo ou não, absorvendo um pouco dessa atmosfera.
Essa atmosfera da gente ver a vítima ali. Sendo a vítima e não fazer nada.
E quase que convidado pelo abusador a também assisti-la.
Sim, e é justamente isso que acontece nesse episódio bíblico.
Isso me remeteu justamente a sociedades, vamos dizer, pré-escritas.
Uma sociedade que seriam quase que pré-históricas, em que reinava um estado de violência. Mas em que não existia ainda esse tabu.
Em que as pessoas, justamente o Jó, deve ter uma reminiscência dessas tribos arcaicas, vamos dizer assim. Em que era natural que as pessoas se relacionassem abertamente.
Mas aí vem o patriarcado e começa a se beneficiar desses favores sexuais das mulheres.
Sim.
Na origem da família, da propriedade privada do estado do Engels, ele fala sobre essa situação também. De… Não tinha um tabu, mas havia uma violência.
Então, acontecia muito das tribos oferecerem a mulher como boas-vindas a pessoas que vinham de outras tribos.
Então, lá a gente faz essa relação de que quando surgem as sociedades monogâmicas, a monogamia foi, a princípio, um direito que a mulher conquistou.
Direito ao seu próprio corpo, né? Que ele não seria mais oferecido a qualquer um. Mas aí, com o desenvolvimento do patriarcado, esse direito passa a ser usado contra a mulher, né?
Contra a sua liberdade sexual, contra o seu desejo. E que até hoje é usado.
E uma coisa que eu acho interessante. Vocês estão falando de marxismo, de Engels e tal, né? E pode, à primeira vista, não parecer. Mas eu acho que tem uma questão econômico-política ali no filme.
Tem a questão rural-urbano. Você vê, por exemplo, a galera que faz maracatu rural, dizendo que nós precisamos ir pro Recife, precisamos mostrar como é que a gente faz música, como é que a gente faz poesia,
valorizar a nossa cultura local. Tem esse elemento da oposição rural-urbano. Mas talvez também tenha um elemento ali de trazer esse latifúndio do açúcar na história do Brasil,
na história do Nordeste, né? Que foi marcado por essa colonização, onde se impôs o latifúndio monocultor, açucareiro, pra você extrair e exportar pra metrópole, né?
E aí será que um pouco desse brutalismo das relações que o filme retrata, sabe? Essas violências que acontecem a todo momento, também não estão conectadas com essa cultura
que foi imposta pelo imperialista europeu, né? É o latifúndio de açúcar pra exportação. Que gera uma cultura da cachaça, do alcoolismo.
E aí o filme traz um comentário irônico com aquele cinema, cine atlântico, que tá em ruínas, né? E onde as pessoas não acessam a cultura filmica.
Não tem uma cultura cinéfila na comunidade. Eles só acessam o que restou de alguns filmes pornográficos, né? E eles ficam lá naquele cinema onde nada se projeta, nada se exibe, né?
Numa espécie de vácuo cultural também, assim, né? Que só esse brinquedo do maracatu é que rompe. E me parece que essa cultura popular é também uma das forças
que torna o filme um pouco mais do esperançar, assim, né? Não totalmente desesperançado, né? Porque tem um movimento cultural, tem uma poesia.
E como você falou, tem uma reflexão existencialista do personagem que talvez essa cultura também traga, né? Esse repente, esse maracatu, né? Ele no meio das vilanias, né?
Depois de cometer um estupro, na ressaca etílica. Ele ainda assim tem uma cultura que dá pra ele uma possibilidade de poesia. Uma possibilidade de filosofia.
Sim, com certeza. A gente percebe também que o próprio diretor usa desse artifício pra criticar a gente, provocar a gente, os espectadores. Porque ele fala, o cinema, aqui é o cinema, a gente pode fazer o que quiser.
Ele tá falando, claro, dos personagens, né? Que estão habitando aquele cinema e fazendo aquelas ações. Mas também do diretor, dos atores, dos roteiristas. Esse é o meu filme, é uma forma de dizer. Esse é o meu filme, eu posso fazer o que eu quiser.
Então sim, eu vou fazer um roteiro provocativo. Eu vou provocar todos vocês e vou trazer esses artifícios. Mas uma outra coisa que me remeteu agora, sobre aquilo que você falou, Pai Gabriela,
das personagens femininas, acho que a mais admirável de todas as personagens femininas é uma daquelas prostitutas, aquela que tinha uma razão maior. Que ela via tudo aquilo como uma coisa passageira,
como um estado momentâneo no qual ela tava buscando recursos. Ela era criticada fortemente por todas as outras prostitutas.
E isso acabava com elas, porque na verdade o que elas sentiam era inveja. Tanto que depois, elas mesmas, as outras, buscavam isso. Só que de uma outra maneira.
Acho que a questão da indústria da cana é muito forte, né? E eu queria ressaltar, além desse conteúdo, também a forma de representação cinematográfica que eu acho muito bom. Tem alguns travelings de cima pra baixo, assim,
que a câmera anda em cima do prostíbulo, assim, na primeira festa. Tem também uns zooms, assim, e umas paisagens muito lindas, né? Que trazem essa coisa da paisagem no cinema.
E a paisagem rural que vai se desertificando, né? Tem o momento da queimada também. Então acho que a questão da paisagem e os recursos cinematográficos, no momento em que a auxiliadora tá lavando roupa,
também começa com uma paisagem lindíssima, né? Uma fotografia excelente. E também a questão do roteiro, acho que vai encadeando com pequenas deixas muito importantes, assim.
E aí o diretor é o Hamilton Lacerda, né? Diretor de tatuagem, como a gente tava lembrando. E me parece muito bem construído o filme.
O roteirista, né? É. Hamilton Lacerda, o roteirista.
Roteirista, né? Então é um filme relativamente curto, mas que ele deixa mensagens muito explícitas, assim. E com recursos cinematográficos muito bonitos.
Sim.
Mas acho que em relação à indústria da cana, começa também com um pequeno clipe que se lê, né? Uma poesia sobre a usina, sobre a transitoriedade
que o tempo vai destruir, inclusive a usina, além de destruir os homens, né? Então seria praticamente um sopro de esperança poética também, de superação desse paradigma.
E a usina, nas coisas das paisagens também, você vê a exaustão do solo, né? E tudo isso, que eu acho que também é um colapso ali, uma crise ambiental também.
Eu achei interessante pensar essa questão do latifúndio, né? Pra gente olhar também pro avô, né? O personagem principal, que é o personagem coadjuvante, né?
Que ele é um homem branco que meio que põe medo nas outras pessoas, né? E tem outras pessoas do vilarejo lá, que diz o que é certo e o que é errado,
tem até uma certa repulsa da cultura popular, né?
Então seria esse senhor de terras, o dono da propriedade, né? Digamos assim. Que é, historicamente, uma figura de violência, né? E também o final dele, né?
O que acaba com ele é a cultura popular entrando dentro da casa dele.
E libertando praticamente a auxiliadora.
Sim. Tem então uma noção até do brinquedo, né? Que é uma palavra que ocorre e até me surpreendeu, né? Que ele fala, né?
O nosso brinquedo, no sentido de que a cultura popular, através dessas festas, desses maracatus, desses frevos, né? Ela brinca com essa realidade brutal, né?
Com essa aridez, com essas opressões e tal, né? Mas eu também acho que tem um contraste de classes muito forte entre aquela figura privilegiada, né? Do Caio Blatt, que fingia…
Fica lá, folgado no sofá, né? E aí aqueles cortes para os trabalhadores braçais que estão colhendo a cana e tal, né?
Então é uma sociedade também com privilegiados e explorados muito claramente demarcados. Também por causa dessa herança colonial e tudo mais, né?
Eu acho que esse claramente é um filme que não vai agradar todo mundo. O próprio modelo no qual o roteiro dele é escrito é um modelo que… Um modelo que não agrada a maioria das pessoas. Porque ele começa em aberto, ele termina em aberto.
Várias perguntas não são respondidas. Inclusive algumas coisas… O filme não é perfeito, óbvio que ele tem seus efeitos. Algumas coisas são questionáveis.
Como, por exemplo, esse próprio falecimento, entre aspas, do avô. No qual a casa dele é invadida. Eu, sinceramente, achei isso bem inusitado. Foi uma coisa que eu não gostei no filme.
Eu preferia… Eu gostaria muito mais que o avô tivesse a oportunidade de sofrer. Sofrer muito mais. E que ele tivesse tido um fim mais drástico. Porque, apesar de terem invadido a casa dele,
e ele ter sido sucateado pelo que ele tanto menosprezava, foi um final até que bondoso para o personagem.
Mas ele está em coma, morrendo.
Então, provavelmente ele está sofrendo no coma.
Pô, está sofrendo em coma? Eu quero que ele sofra com os olhos abertos, né? Quero que ele sofra consciente.
E os golpes também, você vê que eles são todos simulados. Não existe um recurso. Não existe um conto gráfico do golpe, né? Mas, assim, tampouco…
O sangue não joga, digamos.
É um único momento que o filme não quis explicitar a violência.
Não, mas também nos outros golpes contra as prostitutas e tal, você percebe que o golpe…
O primeiro, na cama, foi extremamente agressivo.
O primeiro na cama.
Mesmo aquela sombra que mostra deles no…
É, mas no sentido que você vê que eles não têm os recursos técnicos para fazer uma cena realista de violência, né? É mais até…
Mas eu acho que a cena do avô foi ainda mais teatral, assim, no sentido de não queremos mostrar… Foi bem teatral eles pisando assim…
Eu não entendi muito bem. O filme teve basicamente todo tipo de violência. Teve acidente, teve estupro, teve meio que sequestro… Atropelamento, assinatura de fuga…
Sim, teve tudo, mas na hora do que a gente realmente queria ver, pelo menos o que eu realmente queria ver, que era aquele velho horrendo ser punido, eles pegaram leve.
Mas eu gostaria muito de vocês terem frisado esse momento onde o maracatu, símbolo da cultura popular, invade, digamos, a casa desse senhor abusador
e pratica uma espécie de vingança, né? Porque é um tema também do Bacurau, que a gente debateu algumas semanas atrás. Tem a figura do Lunga, né, no Bacurau.
E você está fazendo um discurso meio Lunganesco, de… Eu diria assim, tipo… Não basta matar certos opressores, tem que cortar a cabeça.
Tem um pouco desse discurso no Bacurau, né? E o que você está dizendo eu acho muito interessante. Acho que temos que debater isso mesmo, sabe? Que a vilania daquele homem era tamanha
que ele merecia sofrer, terrivelmente, uma agonia. E ele foi poupado, né? Teve o brinquedo do maracatu, ele foi para o coma, ele sofreu e foi a pouco. Sim.
O que é uma opinião polêmica, talvez, vocês possam achar, é que, eu não sei para vocês, mas para mim, o personagem mais vilanesco, digamos assim, era o avô.
Talvez vocês possam dizer que era o primo, ou então que era o maninho, mas para mim era o avô. Porque, como eu disse, o primo, ele era da forma como ele era, mas ele tinha um certo plano de fundo,
ele tinha uma certa filosofia interna. Mas o avô, não. O avô, todo… Todo o que ele buscava era apenas dinheiro, era apenas um produto. E era assim que ele via a neta dele.
Sim, sim. É, eu acho que o Heitor, o nome do avô, da auxiliadora, ele, justamente, representa essa violência estrutural da ganância, né? Que gera as outras violências, porque…
Também o personagem do Matheus Nascergalli, que eu me esqueço o nome, vocês lembram o nome do personagem? Não. Ele tem essa violência mais, assim, impulsiva, né?
Que tem um fundo, como você disse, sociológico e filosófico, até, assim, de dizer que a pobreza do mundo é que… A pobreza é que vai socializar o mundo. Ele, inclusive, usa essa palavra, né?
E quando ele fala que o que eu gosto no cinema é que tu pode fazer o que tu quiser, né? Olhando para a câmera, né? Quebrando a quarta parede. É um momento, assim, alto do filme mesmo. Sim. Porque é uma cena muito marcante.
E nesse momento ele está com… baseado, também. Então ele tem um momento ali de… Essa substância ilícita aqui, que vocês demonizam, que vocês perseguem. No cinema eu posso aparecer,
um zoom total, fumando minha maconha e jogando a fumaça dos seres. Então, um pouco essa atitude do Cláudio Assis, que ele sempre foi um pouco punk, assim, né? Um pouco Glauber, também, né?
Que ele faz filmes, assim… Eu sei que muita gente não vai gostar. Mas vocês vão ter que engolir o meu filme, assim. Forte, né? Contundente, violento e tal. E aí eu acho que também é um tema interessante,
o próprio título traz a questão da besta, né? E eu acabo pensando, também, muito na questão animal, né? A gente está aqui na nossa comuna vegana, a gente pensa muito em libertação animal e tudo mais.
E o que significa, então, o filme falar que aquilo é um baixinho das bestas, né? Parece que você está pegando um ser humano e está falando que ele está bestializado.
E isso, a palavra quer dizer, realmente, que você está se aproximando do animal, né? Que você não está sendo o animal racional, né? Como o animal humano é descrito.
Mas você está se parecendo com as bestas irracionais, né? Pelo menos isso é o cartesianismo básico. Claro, todo mundo contesta e tal. Mas me parece que tem um pouco isso, né? Essa animalização dos personagens.
E algumas atitudes que a gente chamaria até de niilistas, assim, né? São atitudes onde você nega completamente a dimensão ética, né?
E talvez o álcool, né? Dessa cultura açucareira da cachaça embote ainda mais as preocupações éticas, os escrúpulos e tal.
Então, parece que são comportamentos bestiais, assim, né? Que o filme está retratando. E que não tem redenção para essa bestialidade a não ser através dessa cultura popular
que vai transformando, que vai trazendo reflexão, que vai pondo poesia no meio dessa usina e dessa podridão, assim, né?
Eu acho que é muito, para mim, é muito complicado, pensar essa questão de quem é o pior personagem. Porque os personagens, eles não são muito dicotômicos, né?
Esse é o bonzinho, esse é o malvadão. Tanto que o avô, ele violenta a sobrinha dele, mas ele, de certa forma, a protege
quando ele não deixa as pessoas encostarem nela.
Você vai assistir, mas você não vai encostar. Então, o filme inteiro, você fica… Esse avô é horrível, esse avô é horrível. Mas a partir do momento que a dona do avô,
a dona do bar, leva ela,
a dona do bar faz o que quer com ela para conseguir o quê? Mais dinheiro. Porque o avô pegava um dinheiro lá, mas não segue perto do dinheiro
que a dona do bar pegou naquele momento.
E é o único, o primeiro momento do filme que ela é tocada de fato, né?
Mas você não acha que isso do avô não deixar que tocarem nela não é porque ele quer proteger, é porque ele vê ela como a propriedade dele. Tanto que muitas vezes ele compara com a mãe dela.
Não, sim, ele fala. Ele fala claramente, ela é minha.
Tanto que ele abusa dela, ele tocava nela. Sim, mas eu acho, para mim,
a minha percepção é de que essa cena da dona do bar falando para as pessoas, para tocar vai ter que pagar, é uma cena, é o maior aprofundamento da violência que aquela menina vinha sofrendo constantemente.
E tem uma violência extra ainda, que é o que as feministas chamam de culpar a vítima, né? Sim. Porque ela está no finzinho do filme, ela chega, ela acabou de ser vítima de um estupro, acabou de ser espancada,
e ela não recebe uma acolhida, né? Ele culpa a vítima pela atitude do macho opressor ao invés de ir lá, né, confrontar o violador.
Então, me parece que é uma cumplicidade dos violadores, né? E eu acho que é isso que as feministas chamam de uma cultura do estupro e isso que o filme está afirmando que é bestial, assim, né? Ou seja, que a humanidade deveria, né,
que a ética faz parte daquilo que nos humaniza, assim, né? Então, você, numa situação onde você lança os escrúpulos éticos no lixo,
você também se torna bestializado. E acho que o filme retrata isso. E muita gente não gosta de um retrato que é o avesso do moralismo, né?
É um retrato da podridão, da ausência de escrúpulos, enfim, do que, por exemplo, o Paul Verhoeven, que faz nos filmes dele. Nos filmes do Instinto Selvagem, em filmes assim, né?
Que é trazer um pouco essa força do instinto, da libido e do irracional e a fraqueza, né?
A quase inexistência de freios morais e reflexões éticas e tal, né? Claro que isso é o que o filósofo fica pensando vendo o filme, né?
Mas me parece que essa bestialização está conectada com o tema moral também, né?
Acho que tem a ver com a decadência daquela sociedade canavieira, né?
Porque, vamos dizer assim, o patriarcado do avô se reduziu àquela propriedade sobre o corpo da neta que é ao mesmo tempo a filha dele.
Ou seja, ele abusava da sua própria filha e teve uma filha com a própria filha, né? E é isso que faz o maninho se interessar ainda mais, né? Dentro da sua perversão pela auxiliadora.
E aí eu acho que nessa decadência, a sociedade canavieira, ela se reduz àquela exploração de uns pelos outros, né?
Porque não existe nenhum tipo de prosperidade que possa, vamos dizer, mediar os conflitos, né? Entre aqueles personagens, assim.
E aí é aí que a degeneração do comportamento de cada um vai se acentuando.
Mas eu queria fazer um questionamento pra vocês. Vocês acham, qual a opinião de vocês? Depois que o avô dela vai pro hospital e tudo o que acontece, e ela vai morar com aquela outra senhora, vocês diriam que aquele foi um bom final pra ela?
Não, acho que justamente não…
Acho que não tem isso.
Foi bom ou foi ruim. É, mostra que ela vai entrar naquele ciclo de abuso que é a vida na prostituição, né?
Ao mesmo tempo ela demonstra, pelas atitudes dela, que pode até ser uma atitude encenada ali naquele contexto, mas ela demonstra estar mais feliz, né?
Porque, pelo menos, ela não pertence a um homem que a agride, que a prostitui.
De alguma forma, ela sente que se libertou. Apesar de estar entrando em uma nova prisão, naquele momento ela sente que se libertou do avô.
Pois eu discordo um pouco de vocês, porque eu acho que ela basicamente saiu de 6 pra meia dúzia. Porque a gente percebe no fim do filme que ela foi morar com aquela senhora, e aquela senhora tem um marido.
E aquele marido tá sentado no bar, ele oferece uma cerveja pra ela, e acaba com eles dois. Pegando um na mão do outro. E você percebe que ela…
O olhar dela, como se tivesse um zelo, como se ela tivesse confiando em alguém mais uma vez. E pelo que ele fala, a forma que ele fala, a forma que a esposa dele fala, e todos os outros personagens,
até mesmo aquele amigo do avô dela, que parecia ser o mais racional, o mais centrado, todos eles meio que nutriam desejos obscuros por ela. Então eu acho que, no fim das contas, o fim dela é o início.
Ela não saiu da posição que ela se encontrava.
Não, o fim dela é realmente 6 por meia dúzia, mas é 6 por meia dúzia pra gente, que tá vendo aqui. Mas pra personagem, se você pensa aquele personagem como uma pessoa,
se você se coloca no lugar daquela pessoa, com certeza ela tava feliz por ter se libertado do avô. Ela não via o que a gente via, ela via a situação imediata dela.
E eu acho que justamente é essa a questão, né? Porque a sexualidade, ao mesmo tempo que é um horizonte de emancipação, quando ela é explorada por terceiros,
ela se torna uma forma de opressão, que é justamente essa forma da cafetinagem. Então, tanto o avô a cafetinava, quanto a nova proprietária,
nesse sentido de que uma cafetina acaba se apoderando do corpo da pessoa prostituída. Eu vejo que é aí que tá a tensão e a luta de classes que tá colocada.
Ao mesmo tempo, ela sair daquele ambiente doméstico, pelo menos ter uma projeção no ambiente social,
e público, permite que ela talvez se desenvolva de maneira diferente. Ainda dentro de um contexto muito adverso que é a prostituição.
Agora, eu acho que aquele nível de violência, ela estaria protegida nesse novo momento. Porque o filme, ele existe justamente para que, mesmo que seja seis por meia dúzia, já é um outro seis.
Já é uma meia dúzia.
Eu fiquei também pensando sobre a questão da bestialidade, que a gente começou a falar. Também na questão da podridão, né? Porque, como você disse agora há pouco, os personagens aparecem muito como vilões.
Você tava defendendo até que o pior dos vilões, que deveria ter sofrido mais, pra ser punido e tal, né? E parece que o filme atribui essas atitudes de vilania a uma certa podridão,
mas que é uma podridão em um certo sentido metafórica, uma podridão moral, ética, de ânimo e tal. Mas também é uma podridão muito concreta, assim, né?
Que pode até ser uma podridão ambiental, relacionada com essa usina, com essa decadência, com essa falta de diversidade nos cultivos, né?
Enfim, é uma região que parece que só colhe açúcar, né? Falta essa diversidade. E aí parece que tem uma podridão que perpassa tudo, né?
Que ela vai, como uma epidemia, contaminando esses personagens. E aí você percebe, quando você diz, os desejos obscuros que eles nutriam por aí.
Parece que essa podridão vai deixando tudo muito obscuro. Ou seja, a sexualidade não é tratada como uma coisa luminosa, jubilosa,
assim, como algo que você pode atingir o orgasmo, a fusão mística com o outro. Não tem um retrato positivo da sexualidade.
Tanto quanto uma sexualidade descrita como um âmbito de podridão, de possibilidade de agressão e violência e tal.
Então, esse eu acho um dos elementos mais questionáveis do filme também, assim. Uma representação muito Verhoeven do sexo, sabe?
Acho que o personagem do Irandir Santos revela um interesse genuíno pela Auxiliadora, entendeu? Porque justamente ele está próximo do contexto dela
e ao mesmo tempo que ele demonstra um interesse muito forte em buscá-la, ela aparece e ele já fala, vamos lá pro… Só que o que ele faz? Ele a convida para… O samba.
O samba que eles falam, né?
A sambada.
A sambada, que seria justamente o maracatu, que é essa coisa da cultura popular e de ter um convívio social baseado na cultura, no respeito, né? Que a arte possibilitaria.
E ao mesmo tempo ele não esconde o desejo sexual por ela, né?
E no entanto ela é meio refém dessa autoridade, né? Ela não tem o direito, a minha liberdade de ir na sambada, a minha liberdade de curtir o maracatu. Se ela tentasse ir onde a cultura popular está, ela seria cerceada, né?
E no momento em que ela está lavando roupas, mostra ela nua, só que num contexto não sexualizado, em que ela está contemplativa e a água representa isso, né?
Ela se limpando. E talvez é o momento em que a sexualidade aparece de maneira luminosa, né? Literalmente assim, inclusive fora de um contexto sexual,
mas ao mesmo tempo, através da nudez, você tem uma visão diferente, eu acho, da personagem.
Muito bom. Eu tenho a mesma impressão dessa cena, assim. Talvez a única cena do filme onde você tem um conteúdo, digamos, erótico, onde tem uma beleza, uma poesia, um júbilo, né?
Ela está se limpando ali, mas também porque ela está longe desse macho violador, né?
Isso, ela está sozinha, né?
É engraçado associar essa questão da podridão, né? Você diz com o fato de que o personagem passa o filme inteiro cavando uma fossa, né?
Exato. Em vários momentos fala isso, que cheiro é esse? Não, essa é a podridão do mundo. Tem uma poética meio cheiro do ralo, né?
Exatamente. Eu me lembrei do cheiro do ralo também. A podridão do mundo, mas também essa podridão vai entrando nos sujeitos, parece, né? E eles vão expressando isso através de atitudes que, por exemplo,
são completamente contra a ideia muito simples de consenso, né? Parece que falta, tipo, nessa sociedade faltou uma formação política no sentido de
o mínimo que você tem nas relações sexuais e afetivas é entender a cultura do consenso, né? É você entender o desejo do outro, é você pactuar com o outro o que vai ser feito, né?
Então essa cultura do consenso colapsa e isso tem a cultura do estupro, assim, né? Com certeza. Então… Por isso que eu acho que é um filme que se chama Baixil das Bestas, né?
Baixil tem a ver com essa baixeza, assim, né? É como se o filme dissesse, pô, há atitudes que poderiam superar essa baixeza.
E remete também a uma região geográfica ali, né? Daquela zona da mata ali pernambucana.
Sim.
Engraçado também que essa questão é desse mesmo personagem que cava a fossa, que é o personagem que aparentemente nutre um afeto verdadeiro pela auxiliadora
e que também é o personagem que em algum momento do filme ameaça o velho. Fala, ah, estou cavando essa fossa, mas na verdade é sua cova. E aí eu acho que se a gente pensar nessa…
Ah, o bonzinho, o malvadão, eu acho que esse personagem seria o personagem bonzinho do filme.
Que inclusive ele é o único capaz de acusá-lo, mesmo que num momento de extrema embriaguez, né? É. De acusar o Heitor, o avô, por abusar da auxiliadora, né?
Essa cena também eu achei muito interessante porque eu senti o impacto de uma violência, mas era uma violência da palavra, né? Ela se transmitiu pelo verbo, assim, né?
Tipo, esse desejo de morte desse velho, né? Odiável, né? Esse velho carrancudo que só reclama, que é um explorador e tal. Ele fala, eu estou cavando a sua cova, né?
Então tem uma violência que também é essa porrada da palavra, e tem a violência explícita, né?
Que, enfim, quando você tem aquela câmera de cima, assim, aquele ponto de vista zenital, né? Do zenith, assim. Tem aquele estupro com a gangue observando, né? Com toda aquela galera de audiência.
E quando ele pisoteia o pescoço da mulher após estuprá-la, aquilo é uma violência muito mais explícita. Sim. Mas eu vejo que o filme tem a violência explícita e tem a porrada da palavra.
E que às vezes essa porrada da palavra também é muito forte, assim, né? Você falar pro outro que você deseja ele na cova, de pé junto e tal, né?
Então, por isso que eu não acho que dá pra falar em bandidos e mocinhos. O que dá pra falar é de uma sociedade que tem uma podridão de violência em todas as relações.
Sim. Eu acho que isso que você falou é muito bom, muito importante, porque é exatamente isso. Não existem mocinhos nesse filme. Vocês falaram que ele seria o personagem mais próximo do Ben. Mas eu discordo um pouco.
Eu não acho que ele era um personagem bom. Eu também não acho que ele tava nesse papel de qualificar o Ben. Porque a gente percebe nas atitudes dele que apesar de ele não ter nenhum interesse por ela,
e talvez até um interesse genuíno,
e até um interesse genuíno, todas as ações dele são ações que não levam diretamente a isso.
Inclusive o próprio final.
Então eu não chamaria ele de o Ben no filme.
Pra mim todo mundo trouxe o Ben ruim.
Sim, é porque aí, diversos, né?
Em si mesmo as pessoas concentram várias coisas ali.
Coisas boas, coisas ruins, etc.
Mas assim, eu quis fazer essa aproximação do clássico, né?
O herói, o vilão.
E aí esse personagem, na minha percepção, seria o personagem que mais se aproxima do herói. Mas que não é. Ele se aproxima naquele contexto.
Naquele contexto de extrema brutalidade, de extrema violência, ele se aproxima do Ben.
Mas ainda falando nessa dicotomia, é porque o filme, o próprio nome do filme, Baixão das Bestas, eu acho que ele quer propositalmente colocar todos os personagens nesse papel de besta, de vilão.
Porque a gente sabe que no mundo real, em todo mundo há maldade e bondade.
Mas nos personagens desse filme, a grande maioria deles são ruins em sua essência.
Sim.
E até o mestre do maracatu fala que queria trazer a auxiliadora pra morar com ele no final, né? Tipo, que era um personagem que mais ou menos tinha uma atuação de boa, né?
Assim como o personagem do Irã de Ur-Sãs. Ele termina se entregando no final, né? Porque assim, a auxiliadora aparentemente tem dezesseis… Não, é dito, né? Tem dezesseis anos.
E ele também tem essa missão de morar com ela, né?
Tem mais uma questão que eu gostaria também de ouvir a opinião de vocês. Que é sobre a linguagem do filme.
Que você colocou, por exemplo, aquela cena que as sombras são projetadas na parede, né?
E aí você propôs que era porque o filme não tinha recursos pra fazer uma cena realista daquele estupro triplo que a personagem da Dirapá está vivendo e tal.
Mas eu também fiquei me perguntando se também não é uma escolha, né? A escolha do filme, em certos momentos, evitar a violência muito explícita. Porque se fosse um filme, sei lá, do Gaspar Noé, né?
Desses caras que gostam de explicitar a violência. Ele poderia ter filmado o estupro em close. Ele poderia ter tentado fazer um pisão romper um pescoço.
Ele poderia ter mostrado, literalmente, a violência. E me parece que ele tem alguns artifícios de falar pra plateia. Porque, olha, isso aqui é um filme.
Ele tem uma certa teatralização, assim, né? E que torna até difícil falar que é simplesmente um filme não realista. Que é um filme puramente realista, né?
Quando a cultura popular invade a casa, não me parece tão realista assim, né? Mas me parece quase, não sei, metafórico, teatral, né? Artificial e tal, né?
Então pode ser que essas cenas sejam pra instaurar no filme um discurso docente. Porque tem o cinema sobre o cinema. Tem o cinema abandonado.
A Dia Paz, ela vai fazer aquele striptease dela com a vodka. Ela usa os negativos dos filmes, né? Não para o fim que eles foram feitos, que é pra projetar e tal. Mas no corpo dela, né?
Como um instrumento erótico e tal, né? Então é o cinema tematizando também a sua ausência numa sociedade assim, né?
De close, os restos do cinema, assim.
E aí o cineasta tá falando, pô, né? O que é que eu posso fazer tratando a realidade brutal com certos recursos de teatralização, de poesia visual e tal, né?
Então eu acho que o Cláudio Assis é muito bom nisso, assim. E depois nos próximos filmes você vai ver no Febre do Rato a poética visual genial que ele vai trazer, né? E o Albertian, assim, né?
Então eu também acho que talvez realismo não seja nem o rótulo que dê pra colocar, tipo. É um filme irrotulável, né? Mas tem vários momentos que ele te fala, ó, você tá vendo um filme.
Tava rolando um estupro, ele simplesmente virou a câmera e explicitamente mostrou as sombras na parede, assim. A projeção, né? Então eu acho muito interessante quanto linguagem, assim, né?
Mas eu acho que é aí que o realismo se realiza, né? Porque é justamente nessa… quase que um making of ali, né?
Quando você vira e filma uma sombra, né?
Aí você… essa metalinguagem remete também a essa sinceridade, né? De quebrar a porta da parede.
De falar de alguma maneira de pessoas, sim, comuns, né?
De pessoas comuns, mas num nível de super violência, assim.
Que é, na verdade, marca do nosso país, né? Também.
É, eu acho que o filme, ele mescla Capim, Luan, o Dourado.
É uma cena bonita também.
E tem essas cenas mais… eu acho que é a mais explícita das violências. Porque o da Dias vai pras sombras.
O primeiro lá, ele sobe, né? Mostrando aqueles paredes bem cinematográficas e tal.
E no atropelamento ele também mostra só a roda girando, escancarado mesmo.
Bom, pra gente encaminhar pros finalmentes, né? Nós fomos surpreendidos por uma tempestade muito forte aqui em Goiânia. Tivemos que correr pra tirar o projetor.
Ali, que sobra sob ameaça de ser inundado. Mas eu queria então que a gente fizesse as considerações finais, assim. E talvez também falássemos um pouco, pra terminar,
do como também é interessante assistir um filme e poder debatê-lo depois, né? Assim, das considerações finais, talvez a questão seja
se vocês tivessem assistido esse filme sozinhos, em casa, e nunca tivessem falado sobre isso com ninguém, vocês teriam uma apreciação diferente dele do que vocês têm agora, depois do nosso papo, né?
É, eu acho que esse dos filmes que a gente tocou aqui, né? Esse é o primeiro que eu não tinha visto ali.
Foi a minha primeira vez assistindo. Então, agora eu vivenciei de fato a experiência de chegar num lugar e ver o filme e ter que falar sobre ele na hora, né? Porque nas outras eu já tava um pouco preparada.
Então, eu percebi muito essa questão que até o John já falou muito no dia do natural.
Que debateu com a gente. E que isso esclareceu muita coisa pra ele. Pra mim também, mesmo. Porque eu cheguei aqui pensando. Não vou falar nada, porque eu estou no choque.
E aí o assunto vai desenvolvendo.
Você vai ligando uma coisa na outra. Aí pensa numa outra rolê. Enfim, é uma experiência muito legal. Acho que vou estar esperando antes de ficar amanhã.
Bom, um pouco sobre as considerações finais do filme. Eu acho que é um filme muito, como eu disse no início, um filme muito interessante. O diretor tem como objetivo principal, acima de tudo,
eu acho que é realmente criticar e questionar a gente como espectador.
Mas eu não diria que nem de perto é um filme perfeito. Não é um filme ruim. Não diria também isso. E também não é um filme mediano.
Eu acho que ficaria nessa coisa de acima da média, bom. Mas não diria que é perfeito, nem quase perfeito. Pelo menos pra mim.
Como eu falei, existem alguns problemas na minha opinião. Existem algumas coisas na sua opinião.
As quais eu acredito que ficou muito corrido.
Por exemplo, a própria resolução dos conflitos. Eu acho que algumas coisas poderiam ter ficado em aberto. Mas algumas poderiam ter um fechamento mais adequado às situações.
A certa dos recursos.
Sobre as cenas de sombras, eu gostei. Mas o período da invasão eu não gostei tanto.
Então, é um filme que eu acredito que vale a pena.
Pela história, pelo contexto, pela crítica.
Mas não perfeito.
E sobre esse ato de debater sobre o filme.
Eu acho que é uma coisa muito interessante.
É a minha maior motivação.
Pra participar desse momento. Desse símbolo que foi justamente o debate.
Porque é óbvio que eu consigo formular uma ideia.
Ter uma visão sobre o filme.
E uma opinião.
Mas de maneira nenhuma eu vou conseguir perceber tudo.
Eu vou conseguir ver todos os detalhes.
Vou pegar todas as referências.
Então, eu vou seguir.
Eu consigo pegar as referências de outras pessoas. As percepções de outras pessoas. Mas acima de tudo eu consigo ver pontos de vista diferentes. Pessoas que vão ter uma opinião muito diferente da minha.
Que vão discordar. Principalmente discordar de mim. Porque eu acho que a partir da discordância. É que a gente consegue ter uma evolução maior do tema.
Porque se todo mundo aqui concordasse com a mesma coisa. O debate seria de certa forma até inútil.
Porque seriam apenas comentários. Mas com isso a gente consegue ter realmente um nível mais elevado. Então, eu acho que o debate foi muito importante.
Foi muito enriquecedor. E é isso basicamente.
Bom, eu quero agradecer a oportunidade de rever esse filme.
De debatê-lo com vocês. Com pessoas que viram pela primeira vez também. Isso é muito importante.
Porque a gente vai medindo como é a recepção dos filmes.
Pra mim é um filme essencial que me marcou muito. Eu vi muito jovem.
Por acaso, assim.
Fui ao cinema. E eu acho que o Cláudio Assis conseguiu uma circulação que é rara pro cinema brasileiro.
Infelizmente.
E ele é competente justamente em trazer temas de extrema violência.
Mas com…
Com interesse social.
Então eu acho que ele faz uma sociologia da violência.
Nesse sentido.
E é aí que eu entendo como extremamente relevante o cinema que ele faz.
E claro, com uma alta voltagem poética. Também. Que é a função artística. E aí os outros filmes do Cláudio Assis, como Amarelo Manga. Se tornaram icônicos.
E pra nossa mostra de cinema pernambucano.
Acho que baixiu das bestas. Talvez um filme B da carreira do Cláudio. Mas que pra mim é um filme central na filmografia brasileira.
Enfim.
Agradeço muito mais uma vez.
E debater filme. Filme é sempre importante. Pra gente também estimular novos públicos. E fazer disso uma cultura.
E o cineclobismo cumprir sua função. Sua missão.
Então massa. Também agradeço a oportunidade de debater com os camaradas. Acho que o filme fica muito mais saboroso quando você… Inclusive assiste ele sabendo que você vai trocar uma ideia depois.
E vai ampliar sua percepção sobre isso. E… Acho que uma das ideias da Casa de Vida. É justamente propiciar um ambiente em Goiânia. Que a galera possa vir.
Pra conhecer filmes novos. Mas também conhecer outras perspectivas.
Sobre cinema, sobre cultura.
Você disse muito bem. Se todos tivéssemos a mesma opinião. Os mesmos interesses. O diálogo não seria interessante. Acho que nessa diversidade de perspectivas. E até nesse…
Ah, gostei disso. Você não gostou disso. O personagem sofreu menos. Eu acho que ele deveria sofrer mais. Eu acho que é um papo de boteco muito bom. Pra um mesa-cast como esse.
Então a gente quer convidar novamente aqui. Pra que vocês frequentem o Cine Club da Casa de Vida. Façam uma propaganda aí. Nesse mês de abril é o Ciclo do Cinema Pernambucano.
E já debatemos aqui… Fizemos a projeção de três filmes. Bacurau, Propriedade e Baixio das Bestas. E semana que vem estaremos aqui de novo.
Pra assistir Divino Amor e debatê-lo. Então venham pra cá. Produzir conteúdo crítico. E produzir comentários em polifônico. Sobre as obras de cinema brasileiro. Assistam Propriedade.
Que é um filme mais recente. E certamente ainda vai circular muito. E assistam Divino Amor semana que vem aqui.
Porque é um filmaço também com a Dira Paes.
E que satiriza os neopentecostais recalcados. No Brasil.
Então uma sugestão. Sugerir tema.
Vamos fazer a campanha. Pro povo escolher os temas.
Dos próximos debates. Eu vou propor cinema iraniano. Eu vou propor cinema vegetariano.
Eu vou propor um cinema sobre a maconha.
O que você vai propor? Bom…
Eu acho que a gente tem cada vez mais… Cinebiografias de músicos. Sabe?
Podia ter um mês de cinebiografias.
Que a gente vê qual é a mais relevante.
Comparando com a vida.
A vida real da pessoa.
Do cantor que seja. Excelente.
Nós já temos material para quatro mostras aí. Eu já tenho até a ideia. Bob Marley. Cássia Ehlers. Clube da Esquina. E David Bowie. Nem sei escolheria. Claudinho Bochecha.
Claudinho Bochecha. Quem mais? Podia ter Borrinha Raffaele. Podia ter…
Podia ter também o Elvis.
Aí a gente podia pegar também…
A gente já estava com o da Priscila ali.
Fazer uma vertente entre os dois filmes.
Charles Macalé.
Pelo filho do Glauber Rocha. O Eric Rocha. Documentário que vi recentemente. Eu também.
Então teremos muitas sessões. Venham para o CineClube a casa de vidro.
Publicado em: 24/04/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
A Casa de Vidro Ponto de Cultura e Centro de Mídia